As origens da separação do cristianismo e judaísmo



Há aspectos importantes a serem compreendidos historicamente na relação
entre cristianismo e judaísmo. Ao contrário do que muitos podem pensar, o
antissemitismo não é um fenômeno moderno, surgido do nazismo. Não é nem
mesmo uma criação do século 19. De fato, o antissemitismo existe já desde
muito tempo. Pode ser encontrado de forma mais ou menos explícita desde a
partir do segundo século da era cristã. É representativa dessa posição a
declaração de Ignácio de Antioquia, em sua carta aos Magnésios 10:1, segundo
a qual “são monstros os que falam de Jesus, ao mesmo tempo que praticam o
judaísmo.”

O objetivo desse artigo não é expor de forma completa e aprofundada as raízes
do antissemitismo, muito menos todos os fatores e variáveis que podem ser
identificadas na gênese e no processo de desenvolvimento do antissemitismo,
mas apresentar uma síntese dessa filosofia com o intuito de entender seu
impacto nas relações entre cristianismo e Judaísmo e na leitura das Escrituras
no cristianismo.


As origens

O primeiro aspecto a ser muito bem esclarecido e jamais esquecido é que o
período neotestamentário não pode ser visto como contendo o embrião do
antissemitismo. Isso porque, ao contrário do senso comum, o Novo Testamento
não pode ser lido através de lentes de uma constante dissensão e
descontinuidade entre o judaísmo e a Bíblia Hebraica e a igreja cristã e sua
Bíblia. Essa é uma leitura carregada de perspectiva externa, estranha ao
próprio texto, como veremos adiante.
Apesar disso, o primeiro século da Era Comum já apresenta evidências de
discussões identitárias tanto cristãs quanto judaicas, cujas consequências
serão, ao final, um afastamento definitivo entre a fé judaica e a fé cristã. Não é
que a fé cristã não fosse vista como judaica ou mesmo que ela não se
entendesse judaica.


Cristianismo e judaísmo juntos


O testemunho histórico do Novo Testamento demonstra que o cristianismo era
percebido e se percebia como parte do judaísmo. Não é à toa que, em Atos
24:5, o mesmo termo utilizado para descrever os fariseus no capítulo 26 é
utilizado para a seita dos nazarenos, da qual Paulo era o principal líder. Essa
era a conformação do judaísmo naquele tempo. Não existia um único judaísmo
(como hoje tampouco há), mas algumas seitas (heireisis – o termo grego cuja
origem significa escolha), que conviviam de forma não muito harmônica, mas
tolerante. Inclusive com discussões constantes, diferenças e maior ou menor
influência frente ao povo e sua relação com a religião e a tradição dos pais.
Assim, temos desde os liberais saduceus até os estritos essênios, passando
pelos fariseus, e, também cristãos e zelotes.


É nesse contexto de convivência de múltiplas ideias e no fértil terreno das
esperanças múltiplas que surge o judaísmo nazareno, ou o cristianismo. E não
estamos falando aqui do advento de Jesus, mas da sistematização da
comunidade de seus seguidores, que refletiam sobre seus ensinos e como
estes se relacionavam com os ensinos que eles mesmos haviam recebido pela
tradição dos pais ou de seus mestres judeus.
Como se relacionariam agora com seus congêneres, uma vez que adotavam a
recente e “novidadeira” doutrina de Jesus o Nazareno, transmitida por seus
mais próximos discípulos? Como poderiam seguir, dentro do judaísmo, crendo
que este Jesus cumpria as profecias messiânicas, enquanto seus líderes e
vizinhos afirmavam que não ele era um falso Messias? Por outro lado,
perguntas semelhantes eram feitas por seus compatriotas judeus, oprimidos
pelos romanos, ansiosos pela liberdade que o Rei Messias traria.


Invasão romana


Essas perguntas dirigiram os esforços de organização e crescimento de ambos
os partidos ou seitas sobreviventes à invasão romana no ano 70 EC: os fariseus
e os do Caminho. É verdade que ainda encontramos rastros dos saduceus,
essênios (há mesmo dúvidas quanto a se eles existiram de fato ou não) e outras
seitas menores. Por outro lado, não resta dúvidas de que aquilo que
conhecemos como judaísmo, nos séculos posteriores, é uma reminiscência dos
fariseus (veja Jacob Neusner e Bruce Childon, no livro Quest of Historical
Pharisees).
As tradições sobre os fariseus após o ano 70 EC, mostram que os fariseus
buscaram sistematizar o pensamento judaico de maneira a manter uma linha
que os ligasse às tradições anteriores. Ainda que permitindo certa liberdade,
mas com profundo interesse na preservação dos aspectos legais e tradicionais
de sua fé. É por isso que, por volta do ano 90, foi convocado o segundo
“concílio” de Jamnia, com um dos objetivos sendo o de definir as bases de sua
doutrina.
Por outro lado, a seita da Caminho não demonstrou interesse algum em
abandonar o judaísmo. Ao contrário, os documentos legados, que estão no
Novo Testamento, demonstram uma grande aproximação com a comunidade
judaica em geral, mas com os fariseus em particular. Paulo, anteriormente
Shaul, não poucas vezes se declara fariseu (Atos 23; Romanos 11; etc.) e as
interações marcantes e descritas na literatura histórica indicam que o lugar de
culto da comunidade ainda era a sinagoga.


Discussões de identidade


É por isso que os rabinos em suas sinagogas incluíram, entre suas orações,
uma maldição contra os minim (hereges), que não se restringia aos cristãos,
mas que certamente os incluía. Através dessa maldição, os hereges eram
detectados nas sinagogas e expulsos. A própria maldição, no entanto, como
acentuou de forma precisa Pieter Willem van der Horst (The Birkat ha-minim in
Recent Research, em The Expository Times, 1994, p.367), sempre se referiu a
judeus, o que indica de forma precisa que havendo separação e dissensão, os
do Caminho ainda era vistos como judeus. Hereges, mas judeus.
E assim terminou o primeiro século, com discussões de identidade e o início de
relações atribuladas entre cristãos e judeus. É um fato, contudo, que os
primeiros ainda eram judeus, cujas doutrinas e crenças estavam ainda dentro
do pano de fundo judaico geral, conhecido naqueles tempos.
Ao sairmos desse século, não podemos deixar de notar que a identidade
judaica fluida foi deixada para trás, após a quase destruição do judaísmo no
ano 70. A necessidade de fixação de uma identidade que não fosse
demasiadamente aberta e ampla, foi uma decisão tomada pelos principais
partidos sobreviventes, fariseus e cristãos. Nesse processo, as diferenças
passaram a pesar muito mais do que as similitudes e essas foram se
acentuando cada vez mais nos séculos seguintes e migrando da periferia para o
centro. Junte-se a este quadro, as pressões políticas tanto sobre o judaísmo nos
dois primeiros séculos, quanto sobre o cristianismo até a época do
compromisso e a unidade na diversidade se transforma na diversidade da
diferença, como veremos nas partes seguintes dessa série. Mais do que não
sermos antissemitas, precisamos entender que a graça alcança a todos.


Sérgio Monteiro é teólogo, capelão e membro do Instituto de Estudos Judaicos
Feodor Meyer, membro da Adventist Theological Society, International Association
for the Old Testament Studies e Associação dos Biblistas Brasileiros. Publicado na NA 26/05/21