Pardes: os níveis da exegese judaica


Às vezes, depois de ler um texto e tê-lo entendido não fica a impressão que mais coisa foi dita? Essa intuição foi por tempos bem-vinda e ainda continua a ser padrão no judaísmo rabínico no modo de interpretação pardes.

O pardes

O pardes é o processo interpretativo desenvolvido pelo judaísmo rabínico para leitura dos textos sagrados. Foi empregado primordialmente para a exegese da Torá, mas estendido a outros escritos bíblicos e talmúdicos. E o Talmud é uma compilação de várias camadas de discussões e comentários que usa largamente o pardes.

Os princípios ou abordagens do pardes são:

  • Peshat (esparramado) a denotação mais simples, óbvia e literal. Apesar de literal, leva em consideração as figuras de linguagem e pensamento facilmente reconhecíveis pelo leitor. Há preocupações filológicas, como a etimologia e gramática.
  • Remez (sugestão ou alusão) interpretações tipológicas ou alegóricas enfocando desde uma só letra, palavra ou perícope (trecho).
  • Derash (investigação) inferências comparativa entre os textos de acordo com os middot, ou regras hermenêuticas, tais como as Sete regras de Hillel, as Treze regras do rabino Ismael ben Elias e as 32 regras do rabino Eliezer ben José ha-Galili.
  • Sod (oculto) a interpretação mística que pressupõe um significado profundo e espiritual.

Das letras iniciais desses princípios surgiu o acrônimo PaRDeS, que coincide com o termo persa e hebraico paraíso. O termo pardes aparece no Talmud (Talmude Babilônico Hagigah 14b) no conto dos quatro homens que entraram no paraíso. Um morreu, outro enlouqueceu e o terceiro destruiu as plantas. O quarto, o rabino Aquiba, transitou em paz. Implicitamente (remez) seriam as possíveis respostas do ser humano ao entrar em contato com temas mais profundos da Torá.

No processo hermenêutico do pardes um texto pode ser interpretado com uma só abordagem ou todas combinadas, conciliando seus significados e aplicações. Contudo, raramente ocorre no mesmo comentário uma análise sistemática de um texto com as quatro abordagens.

Desenvolvimento do pardes

No período do Segundo Templo (as épocas zugot e tanaíta do judaísmo rabínico) predominou a peshat. A halaká (a Torá Oral) desenvolvida nesse período era essencialmente uma leitura peshat do Pentateuco.

Com a diáspora e a interrupção das atividades sacerdotais, muitas normas da Torá não eram mais aplicáveis enquanto os judeus mais piedosos enfrentavam dilemas para continuar a praticar a religião entre povos estranhos. Nesse contexto, na época dos amoraítas (séculos III a VI d.C.) a abordagem derash foi mais útil. Há implicitamente uma busca por intenção autoral, no caso a autoria seria divina, nos textos sacros.

A exegese expansivel da derash providencia respostas para questões de moral religiosa ou social não explícitas nos textos autoritativos. Seria a interpretação “filosófica”, em uma época quando filosofia significava dialética, mas a derash não se limitava a uma inferência de lógica pura. Antes, constitui o método da midrash.

A midrash, uma ampliação do significado e sua aplicação normativa, emprega intensamente paráfrases, analogia e narrativas ilustrativas.

O uso dialético da peshat e da derash foi onipresente em toda a Idade Média do Mediterrâneo. Dada sua associação com a midrash, o raciocínio da derash contribuia para a homilética, as exposições comunitárias, considerando sua aceitação retórica pela audiência. As quatro abordagens passaram a ser reconhecidas com o acrônimo pardes na Espanha no século XIII.

No início do segundo milênio as abordagens remez e sod contribuíram para a emergência da cabala. Por sua vez, os cabalistas preferiram essas abordagem, empregando as técnicas de buscar sentidos em acrônimos (notariqon) ou ler as letras com seus equivalentes numéricos (gematria). Com base nelas, em alguns círculos mais secretivos havia uma atitude esotérica. Essa atitude pressupunha que o leitor deveria ter um preparo espiritual para poder compreender os sentidos mais profundos, como na história do Rabi Aquiba. E como a leitura influencia a composição, vários textos da Idade Média tardia, mesmo com função referencial, como tratados de astronomia (astrologia), farmacologia e alquimia, passaram a ser escritos de forma crípticas.

Em contraposição aos místicos, uma tradição crítica na esteira de Maimônides favorecia a peshat. Na Europa, a peshat era largamente empregada por Rashi e por Abraão ben Esdras. Mais tarde essa leitura acarretaria no renovado interesse pelo sensus litteralis entre exegetas cristãos e hebraístas do Renascimento, como Nicolas de Lyra e Johann Reuchlin, influenciando a hermenêutica dos reformadores.

Com o iluminismo judaico (haskalá), métodos histórico-críticos passaram a ser combinados com o pardes, principalmente entre intérpretes reformados, liberais, masorti e ortodoxos modernos. Mesmo entre judeus não religiosos ou sem envolvimento com círculos rabínicos, como Freud ou Franz Rosenzweig, há resquícios do pardes.

O misterioso Messieur Chouchani (1895 –1968) utilizava o pardes no ensino de seus discípulos Emmanuel Levinas e Elie Wiesel. Levinas particularmente desenvolveu seu método de leitura e uma análise fenomenológica extremamente similar ao pardes.

Paralelos com outros esquemas interpretativo quádruplos

A Idade Média foi a era das interpretações quádruplas. Entre exegetas cristãos na Europa predominava a quadriga, a combinação de abordagens literal, alegórica, moral e anagógica (escatológica). No islam há práticas interpretativas similares, especialmente entre as escolas jurisprudenciais xiitas jafari e mustali, mas não como um método sistematizado.

Desde o humanismo renascentista, a Reforma e o Iluminismo, essa abordagem de múltipla leitura passou a ser preterida. Leituras múltiplas de um mesmo texto ficaram relegadas ao esoterismo marginal enquanto emergiu um consenso de que os sentidos alegóricos extrapolavam o texto.

Um raro paralelo de interpretação quádrupla ocorreu no Direito, com F.C. von Savigny (1779 –1861). Savigny propunha uma interpretação gramatical, lógica ou sistemática, histórica e teleológica das normas jurídicas, para posteriormente escolher quais seriam aplicadas em uma argumentação jurídica.

Aplicações seculares

Estilos de escrita literária pós-modernas, a semiótica de Umberto Eco que identifica textos abertos e produções artísticas experimentais reabilitaram a possibilidade de leituras com significados sobrepostos.

Tente interpretar o filme O poço (2019) de Galder Gaztelu-Urrutia, por exemplo. Uma única interpretação não faz jus ao filme. Em uma visão canônica ou leitura peshat seria a história de um cara que decide se internar em uma instituição bizarra em um ambiente distópico e em busca de tal certificação. Em uma leitura remez, há tipos e símbolos (Dom Quixote, o Messias, a estratificação social). Já uma análise deresh consideraria aspectos formais (motivos literários como na expressão “obviamente” ou símbolos, como os pecados capitais), temáticos (a gula, o canibalismo) e narrativos (o final suspenso). Por fim, em um sentido sod, podem-se inferir leituras existenciais (egoísmo, consumismo, niilismo), políticos (selvagerias do capitalismo) ou religiosos (esperança de redenção). O pardes satisfaz as interpretações de obras propositalmente abertas.

O pardes é um processo interpretativo que extrapola seu uso em textos sagrados. Seu potencial interpretativo supera limitações de leituras circunscritas, como o close reading. Contudo, os riscos de superintepretação continuam, tanto em uma leitura singular quanto em uma múltipla.

Saiba mais

Recentemente, Mordechai Z. Cohen (2003, 2011, 2016) tem publicado extensivamente estudos sobre a hermenêutica judaica, incluindo sobre o pardes. Van der Heide (1983) oferece uma boa introdução aos estudos do pardes, assim como Fishbane (2012).

Cohen, Mordechai Z. Three approaches to biblical metaphor: from Abraham Ibn Ezra and Maimonides to David Kimhi. Vol. 26. Leiden: Brill, 2003.

Cohen, Mordechai Z. Opening the Gates of Interpretation: Maimonides’ Biblical Hermeneutics in Light of His Geonic-Andalusian Heritage and Muslim Milieu. Leiden: Brill, 2011.

Cohen, Mordechai Z.; Adele Berlin, eds. Interpreting Scriptures in Judaism, Christianity and Islam: Overlapping Inquiries. Cambridge University Press, 2016.

Fishbane, Michael, ed. Midrashic Imagination, The: Jewish Exegesis, Thought, and History. SUNY Press, 2012.

van der Heide, Albert. PARDES: Methodological Reflections on the Theory of the Four Senses. Journal of Jewish Studies 34 (1983): 147-159.

Publicado por leonardomalves – https://ensaiosenotas.com/2020/05/14/pardes-os-niveis-da-exegese-judaica/