Talmud, Deus também reza todas as manhãs


“Não surpreende, então, descobrir que a tradição judaica ensina que um bom judeu deveria dizer pelo menos cem bênçãos por dia. Mas por que rezar uma bênção para tudo o que fazemos ou tudo de que usufruímos?”, questiona Massimo Giuliani, filósofo italiano e professor da Universidade de Trento, em artigo publicado por Avvenire, 29-11-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.

Continua a tradução italiana do texto sagrado com as “Berakhot” o livro das bênçãos.

Eis o artigo. 

O primeiro tratado do Talmud Babilônico é dedicado às orações, mais precisamente, às bênçãos, ou berakhot, e inaugura a série de tratados sobre a vida econômica, que na época antiga era a agricultura. O máximo da espiritualidade, por assim dizer, leva ao máximo de concretude: as semeaduras e a vida dos campos, as colheitas e a sua distribuição. Essa nova tradução das Berakhot, tão ampla a ponto de exigir dois volumes (quase mil páginas, texto paralelo em hebraico, editada por Gianfranco Di Segni e publicada pela Giuntina), oferece a possibilidade de conhecer e penetrar no mundo – arcano para a maioria das pessoas – da oração judaica, tão próxima e ao mesmo tempo tão distante do mundo da oração cristã. Partindo da ideia de que se trata de um preceito rabínico e não bíblico (a Bíblia prescreve apenas os sacrifícios no templo), que existem momentos precisos para recitar as orações públicas, que as mulheres são exoneradas disso, que a única língua com que se reza é o hebraico. E que, como ensina o rabino Bachjà bem Asher do século XIV, as orações “são uma necessidade não para Deus, mas para o homem”.

Na verdade, embora dedicado às bênçãos, esse tratado talmúdico é uma verdadeira enciclopédia da fé judaica, rica em comentários bíblicos e parábolas (que os mestres de Israel chamam aggadot), de preceitos específicos e de ensinamentos universais, onde abundam valorosas metáforas teológicas. Tomemos por exemplo a voz de Deus, aqui comparada ora ao arrulho da pomba, ora o rugido do leão, ou “as costas divinas” sobre a quais Moisés pode ver o nó dos filactérios, sugerindo que Deus também reza todas as manhãs (os judeus religiosos, de fato, proferem suas orações matutinas dos feriados usando os filactérios). Nesse tratado, explica o curador Di Segni, a parte normativa entrelaça-se com a narrativa: “A primeira orienta-nos do abstrato ao concreto, enquanto a segunda nos leva de volta do concreto para o abstrato”, do particular para o universal.

Não surpreende, então, descobrir que a tradição judaica ensina que um bom judeu deveria dizer pelo menos cem bênçãos por dia. Mas por que rezar uma bênção para tudo o que fazemos ou tudo de que usufruímos?

Explicam os rabinos: “Quem recebe os bens deste mundo sem dizer uma bênção sobre eles comete um ato de infidelidade e leva o que não lhe pertence, porque não pede a permissão do Senhor sobre o mundo ao qual tudo pertence”. É como se cometesse um roubo. As berakhot, assim, servem para aumentar a consciência do nosso lugar no mundo e entender o valor das coisas mundanas, as consequências de nossas ações, os limites (éticos), dentro dos quais precisamos nos movimentar. A parir disso surge a grande discussão, que ocupa muitas páginas desse tratado, sobre a importância da correta intenção, ou kavanah, não apenas quando rezamos, mas também quando fazemos qualquer ato mundano observando os preceitos. Começando por aquele ato cotidiano que é o de se alimentar, que prevê uma longa bênção de graças a Deus porque a alimento “vem de sua bondade: comemos do seu”, diz literalmente essa oração após as refeições, chamada birkhat hamazon.

Também se deveria abençoar o Céu sempre que vemos fenômenos naturais inesperados (relâmpago, a passagem de um cometa, um terremoto) ou escapamos de um perigo, quando saboreamos um alimento novo, quando recebemos boas ou más notícias, ou aspiramos um perfume ou usamos uma roupa nunca antes usada. Dessa forma não há nenhum aspecto da vida que não seja vivido com os olhos da fé e que não seja mediado pela bênção que lhe corresponde.

Explica novamente o rabino Gianfranco Di Segni, que também é um biólogo: “A vida é cheia de fenômenos desprovidos de direcionamento, de significado e de propósito. A berakha os protege de tal falta de propósito e os torna significativos, relaciona-os com suas origens e seu destino. A abundância de bênçãos é consequência de sua necessidade”.

Isso não é tudo. Quem quisesse estudar essas páginas, que pertencem ao grande corpo de sabedoria judaica elaborado na Babilônia entre o terceiro e sexto séculos, logo descobriria muitas passagens que parecem ecoar ensinamentos similares encontrados no Novo Testamento. Por exemplo, quando se diz que “à diferença deste mundo, no mundo futuro não irá se comer, nem beber, nem se reproduzir, mas os justos estarão sentados (no banquete celestial) e desfrutarão do esplendor da Majestade divina”. Ensinamento que pressupõe a crença rabínica de que exista um “mundo vindouro”, que haverá uma ressurreição dos mortos, que Deus vai remunerar com o bem quem lhe é fiel. Princípios todos que o judaísmo forjado pelos rabinos compartilha com o cristianismo primitivo. Incluído uma visão positiva sobre as mulheres.

No tratado fala-se de Beruria, esposa do rabi Meir, que conseguia corrigir seu marido em matéria de exegese bíblica e até dava aulas (de esperança) para um saduceu, que na interpretação de um versículo tomava uma palavra ao pé da letra negligenciando o contexto e perdendo o sentido. Talvez nenhum elogio às mulheres judias seja maior do que o que lemos nessas páginas, onde elas também são exoneradas da obrigação, masculina, de rezar a oração pública.

Questiona-se o texto: “Qual o valor que as mulheres têm? Eis a resposta de Rav (Jehuda Hanassi): ensinam as Escrituras para as crianças e fazem estudar (o ensinamento rabínico) aos seus maridos na casa dos mestres, e depois os aguardam fielmente quando voltam para casa do estudo”. Para uma tradição que coloca o estudo e educação dos filhos entre os mais altos valores religiosos (acima da própria oração) não é um elogio insignificante. As primeiras Berakhot que as mães ensinam aos seus filhos e filhas – sobre o pão, quando lavam as mãos, ao acender as velas do sábado – são as lentes através das quais o mundo aparece não como mera natureza, mas, justamente, como mundo, ou seja, criação divina: elas constituem o antídoto para a dupla desolação do ateísmo e da idolatria.