Os Filhos de D’us em Gênesis 06:01 a 04 – Primeira Parte


OS "FILHOS DE DEUS" EM GÊNESIS 6:1-4


 

Reinaldo W. Siqueira, Ph.D.

reinaldo.siqueira@unasp.edu.br

1. Introdução

2. As principais interpretações

2.1. A interpretação mitológica

2.2. A interpretação real

2.3. A interpretação setita

2.4. Avaliação das principais interpretações

3. Estudo exegético de Gênesis 6:1-4

3.1. O texto

3.1.1. Delimitação da perícope

3.1.2. Problemas textuais

3.2. O contexto

3.2.1. Contexto literário

3.2.2. A estrutura literária

3.3. A identidade dos "filhos de Deus"

4. Conclusão

Notas

Bibliografia


Resumo: Gênesis 6:1-4 é geralmente é tida como uma passagem obscura e de difícil interpretação. Muitos a consideram uma narrativa mitológica que fala acerca do casamento de anjos ou seres celestiais com mulheres humanas. Outros vêem nela um relato acerca do abuso de poder por parte de poderosos reis e governantes do mundo antediluviano. Um terceiro grupo a entende como um relato que narra a apostasia dos descendentes de Sete ao se casarem com mulheres da linhagem caimita. A interpretação dessa passagem tem dividido exegetas judeus e cristãos ao longo dos séculos. O presente estudo aborda o texto, por meio do método da "Leitura Atentiva" (Close Reading), e encontra em seu contexto literário, na sua estrutura, na seqüência da narrativa de Gênesis 4 a 6 e nos temas e palavras aí usados, indícios que apóiam a interpretação da expressão "filhos de Deus" como uma referência aos setitas, e "filhas dos homens" como um referência a mulheres da linhagem caimita.
Palavras-chave: Gênesis, filhos de Deus, filhas dos homens, anjos, deuses, seres humanos.

The “sons of God” in Genesis 6:1-4
Abstract: Genesis 6:1-4 is usually considered as an obscure passage difficult of interpretation. Many consider it as a mythological account depicting the marriage of angels, or other celestial beings, with women. Others see in it a narrative that describes the violence and abuse of power practiced by kings and powerful rulers in the world before the Flood. A third group interprets this passage as an account narrating the apostasy of men of the Sethite lineage when they united themselves in marriage with women from the Cainite family. The present study approaches the text from the perspective of the Close Reading Method. It finds in the literary context, in the text’s structure, in the sequence of the narrative in Genesis 4-6, and in the themes and words that are used support for the interpretation of the "sons of Gods" as men from the Sethite lineage and the "daughters of man" as women from the Cainite family.
Keywords: Genesis, sons of God, daughters of man, angels, gods, human beings.

1. Introdução

                   Gênesis 6:1-4 tem sido considerado como uma das passagens mais obscuras de toda a Bíblia1. Dificuldades surgem em cada aspecto do texto e esses poucos versos têm provocado muita controvérsia quanto à sua compreensão e ao significado de seus temas2. Uma dessas questões controversas diz respeito à identidade dos "filhos de Deus" e das "filhas dos homens", mencionados nesses versos. Quem eram esses "filhos de Deus"? Seriam eles seres sobrenaturais ou simples seres humanos? Quem eram essas "filhas dos homens"? Como entender Gênesis 6:1-4? Seria uma passagem mitológica que fala da união de seres divinos com mulheres humanas, de forma semelhante ao que é encontrado na mitologia grega e na do Antigo Oriente Médio?3
                   O presente estudo enfocará, primariamente, a questão da identidade dos "filhos de Deus", sendo que, assim fazendo, irá necessariamente abordar o problema da identidade das "filhas dos homens" também4.
                   Esta pesquisa não trata a passagem a partir da perspectiva do Método Histórico-Crítico
5, antes toma o texto tal como ele é, na sua forma final, o abordando a partir da sua perspectiva canônica6, Na primeira seção, será apresentada uma revisão das principais interpretações acerca dos "filhos de Deus", cobrindo os argumentos levantados a favor de cada interpretação e suas implicações para a compreensão da passagem bíblica.                                                      A segunda seção trará uma análise do texto na qual serão abordadas as questões da delimitação do texto, problemas textuais, o seu contexto literário e sua estrutura7. Então será feita uma proposta de identificação dos "filhos de Deus" a partir da perspectiva de uma "leitura atentiva" (Close Reading) do texto. Uma boa exposição da metodologia usada nesse estudo pode ser encontrada na obra sobre exegese do AT de Douglas Stuart8.

2. As principais interpretações

                        Através da história do estudo dessa passagem, três interpretações têm se destacado: a primeira, a interpretação mitológica, na qual os "filhos de Deus" são vistos como seres celestes, sendo ou anjos ou deuses. A segunda, a interpretação real, na qual eles são considerados como sendo reis ou governantes, homens com status de realeza. A terceira, a interpretação setita, a qual os considera como sendo os descendentes de Sete, homens da linhagem dos fiéis a Deus dentre os descendentes de Adão. Na seqüência, cada interpretação será revisada com um foco na perspectiva de cada uma e nos seus argumentos9.

2.1. A interpretação mitológica

                        A interpretação dos "filhos de Deus" como seres celestes era bem comum na antiga literatura judaica. O livro de 1 Enoque, capítulos 6 e 7, o Livro dos Jubileus, capítulo 5, Filo de Alexandria (De Gigant 2:358), Josefo (Ant. 1.31), os Manuscritos do Mar Morto (1QapGen 2:1; CD 2:17-19) identificaram os "filhos de Deus" como sendo anjos10. Alguns dos primeiros exegetas cristãos (como Justino, Clemente de Alexandria e Tertuliano) fizeram o mesmo11.
                   A interpretação mitológica é também a mais comum entre os acadêmicos de hoje. Alguns desses acadêmicos, permanecendo dentro de um contexto mais "bíblico", identificam os "filhos de Deus" com os anjos12. Outros, aceitando a passagem como originária de um contexto politeísta, vêem os "filhos de Deus" como seres divinos, deuses mitológicos que teriam vindo à terra e se unido em casamento com mulheres humanas13.
                   Os principais argumentos apresentados a favor da interpretação mitológica são: primeiro, em outras partes do AT, a expressão "filhos de Deus" se refere a seres celestes, a criaturas divinas (como em Sl 29:1; 89:7; Jó 1:6; 2:1). Segundo, o contraste entre as expressões "filhos de Deus" e "filhas dos homens" indica seres de natureza diferente entre si. O primeiro grupo é divino e celestial, enquanto o segundo é humano e terrestre.                                       

                 Terceiro, os paralelos encontrados na literatura mitológica das culturas contemporâneas ao antigo Israel, as quais também falam desse tipo de casamento entre os deuses e mulheres. Atenção especial é dada à literatura ugarítica, que usa a expressão "filhos de Deus" em referência aos membros do seu panteão divino14.

2.2. A interpretação real

                        Nessa interpretação, a expressão "filhos de Deus" é vista como se referindo a reis, a governantes poderosos que estabeleceram haréns reais pela força ou que violentavam mulheres de forma indiscriminada. Esta interpretação é também encontrada na antiga literatura judaica.                                    

                       O Targum Onkelos e o Targum Jonathan traduzem a expressão "filhos de Deus" como "filhos dos nobres" (benêy ravrevânayyâ’) na LXX, Símacus traduziu a expressão por "filhos dos poderosos" hoi huiói dunasteuóntôn . Vários exegetas judeus seguiram essa interpretaçâo15, e assim o fizeram alguns intérpretes cristãos, às vezes com uma certa nuance16.
                         
Os principais argumentos a favor dessa interpretação são: Primeiro, os juízes são aparentemente identificados com os deuses e os filhos do Altíssimo em Salmo 82. O rei davídico é chamado de "filho de Deus" em 2 Samuel 7:14 e Salmo 2:7. Além dessa evidência bíblica, existe também a evidência das culturas antigas, nas quais os reis eram identificados como tendo uma origem divina.                                   

                     Segundo, esta interpretação toma a sério a frase "tomaram para si mulheres, as que, entre todas, mais lhe agradaram", que indica verdadeiros casamentos e não um tipo de união mitológica. Esta frase fala também acerca do poder dos reis de fazer o que bem quisessem.                                          

                 Terceiro, essa interpretação torna inteligível o julgamento divino que sobreveio sobre toda a humanidade, em vez de atingir somente aqueles que estiveram envolvidos no ato em si (os "filhos de Deus", as "filhas dos homens" e seus filhos). Na ideologia oriental não é incomum que o destino de todo povo esteja ligado ao destino do seu rei17.

2.3. A interpretação setita

                        Essa interpretação identifica os "filhos de Deus" com homens descendentes da linhagem de Sete, ou seja, daqueles que tinham se mantido fiéis a Deus (Gn 5). As "filhas dos homens" seriam mulheres da ímpia linhagem de Caim (Gn 4:17-24). Este modo de interpretar o texto tem sido muito comum no meio cristão desde os tempos patrísticos18. Hoje, ele é mais comum no meio cristão conservador, mas há alguns exegetas mais liberais que o adotam também19.
                   Os principais argumentos a favor dessa interpretação são: Primeiro, homens eram também chamados de "filhos de Deus" na Bíblia (Êx 4:22, 23; Dt 14:1; 32:5,6; Sl 73:15; 82:6; Os 1:10; Ml 1:6). Segundo, não há nenhuma referência na Bíblia que apóie a idéia de que anjos ou demônios sejam seres dotados de funções sexuais, enquanto que o contrário é expressamente declarado em Mateus 22:30.                                                   

                        A idéia, mesmo de sexo em relação a Deus ou os anjos, é algo totalmente alheio ao pensamento hebraico. Terceiro, no contexto que precede o capítulo 6, a família de Sete é diferenciada da família de Caim num plano religioso.                                                    Os Setitas eram aqueles que invocavam "o nome do Senhor" (Gn 4:26); enquanto que os Caimitas eram os descendentes de uma linhagem ímpia (Gn 4:17-24). Quarto, a expressão "tomar mulher" (lâqach yishshâh) é uma expressão comum no AT para o casamento e não denota nenhuma relação anormal entre anjos e seres humanos. Quinto, o vs. 3 deixa claro que o juízo divino concernia o ser humano somente.                                                                

                  Se os "filhos de Deus" eram anjos, alguma referência de juízo sobre eles deveria aparecer no texto também. No entanto, o juízo cai somente sobre os homens. Portanto, o texto parece indicar que somente a humanidade esteve envolvida na falta que foi cometida20.

 

 

2.4. Avaliação das principais interpretações

                        Ao se analisar as três principais interpretações, pode-se observar que cada uma tem fortes argumentos a seu favor. A Bíblia usa o termo "filhos de Deus" tanto para seres celestes, como para governantes e reis, como também para simples homens que faziam parte do povo de Deus. Cada interpretação, portanto, encontra apoio no texto bíblico. Tanto a interpretação mitológica como a real têm paralelos nas idéias, costumes e mitos encontrados no mundo antigo.                                                          

                     Este fato constitui em si um forte argumento a favor delas aos olhos da maioria dos exegetas modernos. Para aqueles que apóiam a interpretação setita, geralmente o testemunho da Bíblia, e especialmente as palavras de Jesus, acerca da natureza dos anjos se constitui no mais forte argumento dessa interpretação.
                   No entanto, cada interpretação deixa em aberto muitas questões. O aceitar a interpretação mitológica, por exemplo, implica na negação do claro testemunho do resto das Escrituras e de Jesus (Mt 22:30) acerca da natureza dos anjos. Além disso, permanece também o questionamento quanto a razão de toda humanidade sofrer juízo pelo pecado de alguns seres celestes com algumas mulheres humanas21.
                     Contra a interpretação real tem se levantado o questionamento de que, apesar de ser encontrado referência a reis como "filhos de Deus" no Egito, na Mesopotâmia e em Canaã; em Israel esse tipo de linguagem parece estar restrita à retórica da corte e a composições poéticas, nunca sendo encontrada no Antigo Testamento, pelo menos, em textos com o estilo de simples narrativa como em Gênesis 6. 

                   Além disso, o termo "filho de Deus" nunca é atestado no Antigo Oriente Médio como uma referência genérica a reis, mas somente em referência específica a um certo rei22.
                   Contra a interpretação setita tem sido objetado que visto o termo "homem" ser usado no vs. 1 como uma referência a toda a humanidade, no vs. 2 ele deve ser entendido também de modo genérico e não específico, como se referisse à linhagem caimita. Em Gênesis 6:1-2 se encontra, portanto, um contraste entre seres humanos e celestiais23.
                   Em vista da força dos argumentos tanto a favor como contra essas interpretações, e em vista que todas as três clamam estar bem fundamentadas na Bíblia, nos parece que a questão poderia ser decidida somente a partir de uma investigação detalhada do próprio texto bíblico e do seu contexto. Este é o propósito da próxima seção.