Árabes, Palestinos, Hamas, Israel, Judeus? Quando as divergências começaram? Primeira Parte


“Multiplicarei sobremaneira a tua descendência, que não será contada, por numerosa que será. […] e chamarás o seu nome Ismael; porquanto o SENHOR ouviu a tua aflição. E ele será homem feroz, e a sua mão será contra todos, e a mão de todos contra ele; e habitará diante da face de todos os seus irmãos.” Gn 16:10-12

            A origem dos povos modernos e sua relação com os povos antigos e personagens bíblicos é um tema que já rendeu e ainda produzirá inúmeras discussões acadêmicas, cada qual variando em abordagens e conclusões de acordo com o viés escolhido para análise. Soma-se a tal realidade o desafio de se verificar possíveis conexões de nações modernas com os povos antigos que deixaram as marcas de sua existência registradas nas páginas da história humana. O presente estudo, ainda que limitado por sua brevidade e temática, tem como objetivo oferecer, ao leitor, evidências que possibilitem uma noção básica de quem são os chamados povos “ismaelitas” citados no texto bíblico e qual a relação deles com os povos que formam a grande nação étnica árabe e a grande nação religiosa islâmica.

E06FIM41Bhr

            Para tanto, o roteiro pretendido começará pelo exame da etimologia do referido termo, passando a seguir ao estudo da descendência genealógica desse povo, sua expansão geográfica e desenvolvimento sociocultural ao longo da história, assim como sua complexa existência ainda nos dias atuais. E, por fim, apontará sua relação com os conflitos religiosos, políticos e militares na região do Oriente e sua emblemática relação com a escatologia cristã através da hermenêutica dispensacionalista. Longe de pretender esgotar o tema, devido à sua complexidade e inumeráveis perspectivas de estudos e respectivas possibilidades de aplicações, tomar-se-á como base as informações do relato bíblico, elucidando-as a partir de estudos bibliográficos já feitos acerca do assunto.

Os Ismaelitas- Etimologia do termo

            O termo traduzido por “Ismael” aparece 48 vezes na Bíblia (GILMER, 2006, p. 692). Tem origem na palavra hebraica Yishmâ‘’êl, que, por sua vez, significa “a quem Deus ouve” ou mais precisamente, “Deus ouve”, ou ainda “ouvido por Deus” (NICHOL, 1993, v. 8, p. 590). Exegetas apontam nessa direção ao afirmar que “esse nome [Ismael] pode ser interpretado como ‘Deus ouve’, ‘Deus ouviu’ ou ‘Deus ouvirá’” (CHAMPLIN, 2000, p. 385). Essa interpretação é confirmada pelo próprio relato bíblico de Gênesis 16:11, que afirma: “a quem chamarás Ismael, porque o Senhor te acudiu na tua   aflição”.         Embora os comentaristas bíblicos discordem em alguns pequenos detalhes, de forma geral há um consenso acerca do significado desse nome.

Ismael

             Já o termo traduzido por “ismaelitas”, no original Yishme‘êl’lîm, aparece oito vezes no texto bíblico (GILMER, 2006, p. 692) e, traduzido ao pé da letra, indica “aqueles que descendem de Ismael e, por isso, metade egípcios e metade semitas” (NICHOL, 1993, v. 8, p. 589). No entanto, alguns comentaristas lembram que ainda nos tempos bíblicos o termo passou a ser empregado, ao mesmo tempo, com duplo sentido: primeiro estrito e depois amplo. Em sentido estrito foi usado primariamente para indicar aquele(s) que descende(m) de Ismael, o primeiro filho de Abraão, gerado com a egípcia Agar, escrava de Sara. Nesse caso, o uso do termo é claramente baseado no vínculo de hereditariedade (vínculo biológico).

            No entanto, mais tarde e secundariamente, o termo chegou a ser compreendido no Oriente Próximo e Médio num sentido mais amplo, sendo usado como um sinônimo de povos que habitavam o deserto da Arábia e que eram ali liderados por Ismael, o mesmo filho de Abraão já mencionado. No último caso, o uso do termo é baseado no vínculo de liderança, decorrente de uma relação de natureza mista e complexa que envolve certa cumplicidade política, religiosa, militar e social (vínculo ideológico). Nesse sentido já se afirmou que: o vocábulo foi usado como uma designação genérica de povos árabes, ainda que, estritamente falando, Ismael tivesse sido progenitor de somente certas tribos, através de doze filhos que se tornaram chefes de suas respectivas tribos. Em seu sentido estrito, esse nome aplica-se somente àqueles doze clãs (CHAMPLIN, 2000, p. 387).

            Em resumo, o termo que em seu sentido primário significava apenas os povos que descendem de Ismael (vínculo biológico), o primeiro filho de Abraão, em seu sentido secundário passou a significar todos os povos que posteriormente foram liderados por ele, recebendo sua influência determinante nos aspectos político, religioso, militar e social (vínculo ideológico).

Descendência genealógica

            O relato bíblico é rico em textos que permitem o mapeamento genealógico dos ismaelitas, considerando o termo em ambos os sentidos: estrito e/ou amplo. Conforme indica o relato bíblico, “Agar deu à luz um filho a Abrão; e Abrão, a seu filho que lhe dera Agar, chamou-lhe Ismael. Era Abrão de oitenta e seis anos, quando Agar lhe deu à luz Ismael” (Gn 16:15-16).

            Esse evento teria ocorrido, segundo historiadores, ao tempo da décima segunda dinastia egípcia, essa por sua vez datada em cerca de 2100 a 1888 a.C. (MESQUITA, 2002, p. 321). Essa datação indicaria que os povos ismaelitas, considerados em sua origem patriarcal, contam atualmente com cerca de 40 séculos de existência e ocupação do mundo geopolítico na região do Oriente Próximo e Médio, embora sua expansão ali tenha ocorrido gradualmente conforme se notará mais adiante.

            Conforme apontam os textos de Gênesis 16:10, 21:13, e 21:18, Deus prometeu a Agar e depois a Abraão que faria frutífero a Ismael, o qual a seu tempo daria origem a uma “grande nação”. Na mesma perícope é dito em Gênesis 21:14, que quando despedidos da tribo de Abraão, Ismael e sua mãe Agar peregrinaram pelo deserto de Berseba por certo tempo, sendo essa, na época, uma região mais próxima do acampamento de Abraão. E no verso 20, a seguir, se informa que Ismael cresceu, vindo a habitar na região do deserto de Arã[1], ao sul de Canaã (NICHOL, 1978, v. 1, p. 358), uma região mais próxima do Egito, onde tomou por mulher uma egípcia, certamente por influência de sua mãe, que também era da mesma nacionalidade.

             O texto Identifica essa região como sendo o espaço geográfico que vai “desde Havilá até Sur, que está em frente do Egito, como quem vai na direção da Assíria” (Gn 25:18a). Comentaristas afirmam que essa era “a região desértica localizada entre o Golfo de Acaba e o Golfo de Suez, ao sul de Cades-Barneia” (NICHOL, 1978, v. 1, p. 358). Embora se tenha uma noção geográfica dessa região, não se pode determinar com exatidão esse primeiro ponto de ocupação de Ismael, de onde se expandiu para todo o deserto nos anos seguintes. Acerca dessa área é dito:

            Desde Havilá até Sur. A localização exata de Havilá é incerta. Por esta razão, a zona oriental do domínio ismaelita da Arábia não pode ser determinada com exatidão. Seu limite ocidental foi Sur (Gn 16:7; 20:1), não muito longe da terra do Egito, vindo à Assíria. Isto não significa que o domínio ismaelita se estendeu até a Assíria, na Mesopotâmia, mas antes, se refere à sua extensão em direção ao norte, em termos gerais. Portanto, os ismaelitas divisavam com o Egito ao oeste, com Havilá ao sudeste, e se estendiam por certa distância até o norte através do deserto setentrional da Arábia (NICHOL, 1978, v. 1, p. 380).

            Apesar das hipóteses interpretativas diversas às quais se sujeita o relato bíblico, o movimento mapeado pelo texto indica que Ismael e seus descendentes expandiram sua ocupação, primeiramente na direção do sul de Berseba, onde passou a dominar nos seus primeiros anos no deserto. Com o passar do tempo, os descendentes de Ismael ampliaram sua ocupação na direção leste e norte de onde estavam, ocupando até as fronteiras sul e leste das terras herdadas por Isaque, o que explica a afirmação bíblica de que “Ele se estabeleceu diante da face de todos os seus irmãos” (Gn 25:18b). Essa expansão será ainda melhor detalhada.

ARABIA.jpg

            Um pouco mais adiante, no texto bíblico de Gênesis 25:9, é dito que por ocasião da morte de Abraão, Ismael esteve junto a Isaque nos rituais de sepultamento do pai. Segundo historiadores do Israel Antigo, era comum em ocasiões fúnebres os familiares separados por razões diversas se unirem momentaneamente para os ritos de lamentação e sepultamento de um patriarca que lhes era de comum importância (VAUX, 2004, p. 84-85). Possivelmente, a participação nos ritos de homenagem a Abraão seria o motivo do encontro entre os dois irmãos que havia certo tempo não viviam mais juntos à época da morte do patriarca, e cujas tribos já mostravam certa hostilidade recíproca, embora seus limites geográficos e de influência fossem fronteiriços, conforme aponta o relato bíblico.

            O texto bíblico informa ainda que Ismael logo gerou toda uma descendência que se multiplicou rapidamente, povoando a região maior do deserto da Arábia. Sua prole deu prosseguimento ao domínio que ele exerceu já desde a primeira região em que se estabeleceu a partir de sua despedida por Abraão, conforme relato de Gênesis 21:20-21. Seus filhos ali gerados foram em número de doze, os quais formaram a matriz genética de sua nação étnica e, conforme relato de Gênesis 25:12-18, são identificados nominalmente:

“12 São estas as gerações de Ismael, filho de Abraão, que Agar, egípcia, serva de Sara, lhe deu à luz. 13 E estes, os filhos de Ismael, pelos seus nomes, segundo o seu nascimento: o primogênito de Ismael foi Ne-baiote; depois, Quedar, Abdeel, Mibsão, 14 Misma, Dumá, Massá, 15 Hadade, Tema, Jetur, Nafis e Quedemá. 16 São estes os filhos de Ismael, e estes, os seus nomes pelas suas vilas e pelos seus acampa- mentos: doze príncipes de seus povos. 17 E os anos da vida de Ismael foram cento e trinta e sete; e morreu e foi reunido ao seu povo. 18 Habitaram desde Havilá até Sur, que olha para o Egito, como quem vai para a Assíria. Ele se estabeleceu fronteiro a todos os seus irmãos.”

            Além dos doze filhos mencionados, Ismael teve uma filha por nome Maalate, a qual, conforme o relato de Gênesis 28:9, tornou-se uma das es- posas de Esaú, o filho de Isaque (CHAMPLIN, 2000, p. 387). De todas as referências se infere que os descendentes de Ismael foram muito numerosos, começando por seus doze filhos e uma filha, passando por seus demais descendentes na linha hereditária, e tornando-se numerosos naquela região por se misturarem a outros povos. E, à medida que cresciam em número, ampliavam sua ocupação geográfica, passando a dominar extensas regiões da Arábia cuja ocupação até então era feita de forma esparsa por outros clãs e povos, sendo esses alvos de sua influência e até domínio. E assim como Ismael fizera com seu irmão Isaque, seus descendentes continuaram sendo vizinhos fronteiriços dos herdeiros daquele, conforme relato de Gênesis 25:19-34. Outro texto bíblico que resume bem o relato da origem e descendência genealógica dos ismaelitas encontra-se em 1 Crônicas 1:28-31.

Este artigo é a primeira parte de um texto original maior, que será postado em partes para facilitar seu estudo e pesquisa.

Carlos Flávio Teixeira

Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) . Docente no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp).

Fonte: Revista Kerigma, Volume 8, Número 2, 2º Semestre de 2012.

Fonte: https://www.andrews.edu/library/car/cardigital/Periodicals/Kerygma/2012/2012_V08_N02.pdf

[1] 2 O termo é apresentado pelos autores com inúmeras variações: Arã, Parã, Farã, mas todas elas compartilham da mesma indicação de localização: a região desértica ao sul de Canaã, no lado norte da península do Monte Sinai.