ÁRABES, PALESTINOS, HAMAS, ISRAEL, JUDEUS? QUANDO AS DIVERGÊNCIAS COMEÇARAM? SEGUNDA PARTE


Há algumas evidências extra bíblicas consideráveis que se relacionam direta ou indiretamente ao surgimento e/ou desdobramentos do povo ismaelita na história, confirmando assim o relato bíblico acerca do tema. Vejamos três delas:

a) O Código de Hamurabi:

            Há uma menção no artigo 146 afirmando o fato de que o filho de uma serva era considerado filho legal de sua senhora, não podendo sua mãe biológica reclamar qualquer tipo de autoridade sobre ele. Pertencia por direito à dona da escrava, sendo considerado inclusive sua propriedade. Champlin (2000, p. 385) esclarece que essa menção não implica que “naquela porção do mundo antigo havia uma lei generalizadora no sentido de que a mãe escrava não podia fazer prevalecer os seus direitos sobre a mãe livre. Às escravas, não se permitia que fossem arrogantes ou exigentes”. Foi exatamente nesse contexto sócio jurídico que houve o desentendimento entre Sara e Agar em razão da prerrogativa de mando absoluto e exclusivo sobre Ismael, num claro conflito de exercício de autoridade.

Hamurábi, um dos principais reis babilônicos.

            Manter a autoridade sobre o menino, que era o primogênito de Abraão, era uma questão de honra em duplo sentido. Primeiro porque o assunto que estava em jogo era a autoridade de Sara. Uma questão de definição de quem detinha o poder matriarcal, segundo à já referida lei mesopotâmica. Não se tratava apenas de reclamar uma filiação, mas de garantir um status, a posição de matriarca oficial do clã, senhora e dona do posto feminino de maior influência tribal. Uma condição que normalmente era desfrutada apenas pela figura feminina máxima do clã, reservada, por sua  vez, para a esposa oficial do líder máximo. Abrir mão de tal direito, ou mesmo tê-lo ameaçado, seria colocar-se em posição de fragilidade que pode- ria minar sua autoridade em outros aspectos essenciais para o convívio tribal. E, secundariamente, era uma questão de honra porque estava em jogo a condição de submissão do menino mais velho em relação   a seu irmão Isaque, que, embora mais novo, deveria ser o herdeiro da promessa, conforme predito. Foi o desentendimento por essa dupla causa que deu origem ao povo ismaelita como distinto e separado do povo irmão que descendeu de Isaque. Ambos mais tarde se tomariam conhecidos, respectivamente, como ismaelitas e israelitas.

b) O relato de Flávio Josefo:

            O historiador judeu menciona tanto o nasci- mento de Ismael quanto sua posteridade num relato idêntico ao contido na Bíblia (JOSEFO, 2007, p. 94, 98). Quanto ao patriarca Ismael, Josefo afirma que “Abraão tinha oitenta e seis anos quando nasceu Ismael. […] E, sobre o que Abraão pediu a Deus, se Ismael viveria, Ele respondeu- lhe que viveria muito tempo e que a sua posteridade também seria muito grande”.

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Quanto à descendência de Ismael, Josefo pontua que “quando Ismael chegou à idade de se casar, Agar deu-lhe por esposa uma mulher egípcia, porque ela também havia nascido no Egito. Ele teve doze filhos: Nebaiote, Quedar, Abdeel, Mibsão, Misma, Dumá, Massá, Hadade, Tema, Jectur, Nafis e Quedemá. Eles ocuparam toda a região que está entre o Eufrates e o mar Vermelho e a chamaram Nebateia.” E por fim menciona expressamente que “os árabes originaram-se deles [os ismaelitas], e os seus descendentes conservaram o nome de nabateenses por causa de seu valor e da fama de Abraão” (JOSEFO, 2007, p. 98).

c) Os achados arqueológicos:

            Para os estudiosos de arqueologia, o texto de Gênesis 37:25-36 (que relata a venda de José), na forma intercambiável como está disposto, lança luz sobre o desenvolvimento da nação ismaelita. Nesse sentido é observado que “o texto varia os termos midianitas e ismaelitas, sugerindo, em qualquer deles, uma conexão entre os dois grupos ou a possibilidade de que os midianitas compreendessem um grupo maior dentro da ampla estrutura tribal ismaelita” (KAISER JR., 2005, p. 92).

arqueologia

           Se tal assertiva for verdadeira é possível afirmar que existem muitas evidências arqueológicas acerca dos ismaelitas, em especial quanto a um dos grupos que lhe fazia parte, os midianitas. Para os críticos literários, o uso intercambiável dos termos nesse texto evidencia que os descendentes de Quetura são considerados ismaelitas porque passaram, de alguma forma e a partir de determinado momento na história, a fazer parte da estrutura tribal daqueles. Portanto, descobertas arqueológicas relacionadas aos midianitas revelam, de certa forma e em certa medida, algo do próprio modo ismaelita de vida, sob o qual viveram influenciados por séculos.

            Escavações a leste do Golfo de Aqaba têm descoberto algumas cidades fortificadas e numerosas vilas que datam do último Período do Bronze e do início da Era do Ferro. Uma distinta variedade de artigos cerâmicos (em duas cores), com escritas similares àquelas encontradas nas cerâmicas Miscenas são vistas como tendo sido manufaturadas por volta dos séculos 12 e 13 antes de Cristo. Este tipo distintivo de cerâmica também tem sido desenterrado em Timna, um local de mineração a poucas milhas do Golfo; um santuário midianita foi descoberto no mesmo lugar. Enquanto as pinturas cerâmicas sugerem uma conexão entre os midianitas e o mundo Grego, o método de manufatura se compara com o que era usado no Egito. Partindo-se deste e de outros fatores pesquisados tem-se conjecturado que, ao contrário de ter sido um empobrecido, desorganizado e nômade povo, os midianitas vieram ter uma desenvolvida sociedade, conduzindo negócios com nações estrangeiras e produtivamente engajada na disputa mineral, metalúrgica e produção cerâmica (KAISER JR., 2005, p. 92).

            Se, de fato, os midianitas tiverem sido parte do povo ismaelita como propõe a arqueologia e muitos comentaristas bíblicos, então as evidências já encontradas permitem verificar, ao menos em parte, quais eram os costumes e projeção de importância dessa parte da nação ismaelita que em dados momentos da história foi um importante povo do Oriente. Mas a pergunta que fica é: seria o intercâmbio de termos que aparece no texto de Gênesis 37:25-36 suficiente evidência para considerar os midianitas parte do povo ismaelita? Talvez a resposta mais adequada a essa indagação esteja nas próprias páginas do relato bíblico.

midianitas

            É mencionado em Gênesis 25:1 que ao tempo da morte de Sara[1], o patriarca Abraão tomou para si outra mulher, chamada Quetura, com quem teve ainda seis filhos, dentre eles Midiã, o pai dos midianitas.4 Acerca dessa linhagem se comenta que “destas tribos árabes, Midiã é a mais conhecida. Contudo, alguns dos nomes reaparecem no Velho Testamento e também, certamente, em inscrições da Arábia Meridional. Assurim (ou Am) não deve ser confundido com o seu homônimo que designa os Assírios” (KIDNER, 2006, p. 139). Mais adiante, no mesmo capítulo, o relato acrescenta uma informação importante para o presente estudo.

            Os versos 5 e 6 esclarecem: “Porém, Abraão deu tudo o que tinha a Isaque; Mas aos filhos das concubinas que Abraão tinha, deu Abraão presentes e, vivendo ele ainda, despediu-os do seu filho Isaque, enviando-os ao oriente, para a terra oriental” (Gn 25:5-6). Conforme se infere dos textos bíblicos citados, os filhos de Abraão com Quetura deram origem a muitos povos, dentre eles os midianitas. Esses povos se desenvolveram na região chamada oriental, identificada pelos comentaristas como o deserto que cobre a região leste de Canaã. Sendo os filhos de Quetura descendentes tardios de Abraão, foram separados de Isaque pelo mesmo motivo que Ismael, e enviados ao desértico leste por iniciativa do patriarca. O território para onde os enviou, se considerado em sua imensidão de [2]terras, é o mesmo para onde Ismael já havia expandido seu domínio a essa altura. De qualquer forma, esses povos meios-irmãos foram despedidos por Abraão pelo mesmo motivo — evitar conflitos com Isaque — relata Gênesis 21:9-21. Embora Ismael inicialmente tivesse migrado para a região mais ao sul do deserto da Ará- bia, e seus irmãos mais para leste, seu entrelaçamento geográfico e ideológico foi inevitável à medida que os ismaelitas expandiram seus limites de domínio. Há que se levar em conta, ainda, o fato de que Ismael e seus descendentes se estabeleceram primeiro, sendo natural que seus meios-irmãos, os descendentes de Quetura, se colocassem sob sua liderança.

            A Bíblia, embora não tenha pretensão de ser um tratado especializado em história, traz relatos pontuais confiáveis dos episódios ocorridos nos momentos em que Deus interveio na trajetória humana. O relato citado esclarece uma peça-chave do quebra-cabeça histórico acerca da origem da grande nação política e religiosa árabe. Aponta que mais tarde, em algum momento posterior à despedida de Ismael, uniram-se a ele os seus irmãos paternos filhos de Abraão com Quetura, sobre os quais passou a liderar em razão de algumas realidades, como o fato de ser mais velho e mais experiente, ter estabilidade social já alcançada na geografia que ocupava, contar com estrutura de sobrevivência já estabelecida para a vida inóspita no deserto, e até mesmo seu potencial de domínio político e militar da região foram fatores que, sem dúvida, atraíram seus irmãos para sua influência. Mas pode conjecturar-se que o fator talvez mais forte foram seus laços paternos comuns, o que não despreza inclusive a mágoa comum alimentada em razão do ciúme de Isaque. Dessa forma, as evidências extra bíblicas apontam o que as Escrituras confirmam numa análise sistemática e contextualizada.

            Já desde os tempos antigos, embora o termo ismaelita no seu sentido primário e estrito fizesse alusão à linhagem de Ismael, denotando um vínculo hereditário, em seu sentido amplo e secundário fazia alusão também a todas as demais tribos e povos que mais tarde se colocaram sob a liderança — política, religiosa e social — dele e de seus descendentes. Essa agregação de forças, marcada pela sujeição de um lado e pelo domínio de outro, foi conveniente e prática para os interesses e necessidades de ambas as partes à época. Passaram a habitar num mesmo território inóspito, e não é difícil especular sobre o crescimento do ódio e da oposição de todos esses irmãos contra Isaque, o motivo de sua peregrinação e a causa aparente de seu desprezo por parte do pai Abraão. Não seria difícil entender, nesse contexto, o despertar do ciúme e da inveja daqueles que compartilham o destino comum de terem sido aparentemente desprezados para garantir a autoridade do herdeiro de todas as riquezas do pai. Compartilhar a ascendência, o ódio, e o mesmo inimigo comum certamente dava a Ismael e aos filhos de Quetura uma identidade singular, vocacionada a mantê-los unidos, mas também dava a eles um motivo comum para odiar Isaque e seus descendentes, e tentar destruí-los tanto quanto e tão logo fosse isso possível.

Este artigo é a segunda parte de um texto maior, que será postado em partes para facilitar a leitura e a pesquisa. 

Carlos Flávio Teixeira

Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo e Mestre em e Direito Constitucional pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) . Docente no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp).

Fonte: Revista de Teologia do Unasp – Volume 8, Número 2, 2º Semestre de 2012

[1] Alguns autores comentam que foi antes, outros afirmam que logo depois.

[2] Em Gênesis 25:1 diz assim: “E Abraão tomou outra mulher; e o seu nome era Quetura;  E deu-lhe à luz Zinrã, Jocsã, Medã, Midiã, Jisbaque e Sua.”